Home
 
pavlov equipe
O conjunto de monstros e demônios, de condições horríveis, apontados nos outros, na verdade reflete uma normalidade inacreditável, como denunciava a importante filósofa Hannah Arendt. Ela dizia, como disse dos carrascos nazistas e seus apoiadores: eles eram “simplesmente incapazes de pensar”. Ela os avaliou como vivendo “no momento em que a consciência cessa de funcionar”. Insistia na enormidade dos crimes cometidos no cotidiano racista e fascista, por esse tipo de gente, evocando sociedades modernas sem consciência da responsabilidade com doentes, famintos, pobres e miseráveis.

Prefiro os hereges aos crentes que afirmam absurdos como verdades sobre a vida e a morte. Estes estão convictos de que as confissões devem ser obtidas a qualquer preço, mesmo que seja o preço da tortura das consciências. Fico com os torrados nas fogueiras das inquisições, porque não confessaram aquilo em que não creem. Estavam certos, o erro estava nos que os queimaram. Quem nos apontará um caso sequer de vitoriosos que erraram e confessaram seu erro?

Ando com quem não tem poder, com os fracos e ignorados, isolados porque são diferentes. Disse Rubem Alves, “os fracos são as vítimas, e sobre as vítimas se coloca o estigma do erro. Assim aconteceu com as bruxas (falsas bruxas, claro!)”. Do mesmo modo com os não-calvinistas, não- luteranos, não-tomistas, não-jesuítas, não-agostinianos. Assim aconteceu com os incas, maias, aztecas, tupis-guaranis, os povos indígenas, os negros macumbeiros, os pobres com quem os ricos não querem repartir suas riquezas. Assim como aconteceu com Galileu e Copérnico, que pensaram o planeta e o universo de maneira diferente dos inquisidores, e inventaram uma nova maneira de pensar fora do que se pensou por séculos e milênios.

Não acho difícil ouvir os que pensam diferente, e querem viver fora do convencional. São fracos? Nietzsche fez-me pensar, quando disse: “Oh, meus amados irmãos, quem representa o maior perigo para o futuro de todos, e do homem, senão os chamados bons e justos”?… (Assim Falou Zaratustra). Por que uma pessoa convencida de uma certa verdade, superioridade moral, superioridade de classe social, superioridade racial, homofobia, misoginia, deve ser acatada como verdadeira e sincera?

Kant, bom cristão, protestante talvez inspirador da “reta doutrina”, inventou o tal “imperativo categórico”: a verdade deve ser dita, qualquer que seja o seu preço… E, assim, o sujeito pensa que o fanatismo autoritário e fundamentalista é justificado por conceitos absolutos construídos através da harmonia íntima com a verdade. Os que veem diferente dele, que não concordam com suas afirmações sobre o racismo, o sexismo, os princípios fundamentais que abraça, os absolutos, devem ser silenciados e declarados inimigos da verdade.

O inferno do vizinho é o mesmo que se apresenta no meu quintal? O mesmo homem bondoso, trabalhador, pai de família exemplar, sem registros policiais, pode ser a pessoa autoritária que nega a existência e opressão da pobreza, e da miséria diante de seus olhos. É o mesmo que está pronto a aniquilar o adversário ideológico que reclama por igualdade na participação dos bens da sociedade; o mesmo que se coloca contra quem reclama direitos à cidadania igualitária no mesmo nível dos mais favorecidos; o mesmo que considera a homofobia necessária para coibir gays, lésbicas, travestis, transexuais; o mesmo que convive sem reflexão com a misoginia e o sexismo, enquanto esquece sua mãe, sua esposa, suas filhas, as quais reivindicam igualdade nos direitos sociais.

Dois pesquisadores  mapearam nos últimos meses o perfil psicológico dos integrantes do chamado alt-right, ou direita alternativa, que se empenhou na eleição de Trump nos Estados Unidos. Para este tipo de gente, justifica-se o autoritarismo e desprezo por grupos considerados “menos evoluídos”.

Como escrevi recentemente, e você pode ter lido, nos poucos momentos de coragem, confesso, tive reduzida a aceitação do que se revela aos fanáticos fundamentalistas, contra o medo e o horror que eles representam. Mas descobri que a coragem é o caminho que prepara um homem ou uma mulher através da noite, da escuridão dos tempos de opressão que voltam ciclicamente para incomodar a liberdade.

Embora o costume seja ouvir a história contada pelos vitoriosos, também prefiro lê-la do ponto de vista dos derrotados, embora a estes, no mais das vezes, seja imposto o silêncio. Não sou um cachorro pavloviano, saltando numa chapa de aço, cada vez mais rápido quanto mais esquenta a lâmina sob suas patas. Eu posso pular da chapa e apagar o fogo.
Derval Dasilio

[*][*][*][*][*]

Deixe um comentário